Sexta a tia Clara ligou avisando: se eu quisesse procurar pelos sapatos do tio Estevão tinha que chegar cedo, no dia seguinte. À tardinha vinham os filhos, levariam os pertences que lhes interessassem e o resto seria doado ao Lar Escola São Francisco. Nove da manhã de sábado eu tocava a campainha, pronto para começar a minha busca.
Poucos objetos estiveram mais ligados a uma pessoa do que aqueles sapatos ao meu tio Estevão. Dos 84 anos que passou sobre a Terra, 60 foram calçando o mesmo modelo. Difícil descrevê-los, não porque tivessem algo de excêntrico, mas por serem demasiadamente comuns -se é que algo pode ser demasiadamente comum: eram de couro preto, quatro furos pro cordão, sola de madeira, salto de borracha. No colegial, quando aprendi sobre o mundo inteligível de Platão, aquele no qual residiriam os ideais de todas as coisas, logo pensei nos sapatos do tio Estevão, os paradigmáticos sapatos do tio Estevão pairando lá no alto, muito acima dos canos altos, Melissinhas, escarpins e outras sombras projetadas na balbúrdia da caverna.
Meu tio não gostava de balbúrdia. Casou-se com a namorada da escola, teve um filho e uma filha, foi fiel à esposa, à marca de desodorante, ao nó da gravata, à sopa no jantar -e, claro, aos sapatos. Descobriu-os numa viagem à Franca, a trabalho, em 1952. Muitos anos atrás, num Natal, contou-me que bastou calçá-los para saber que "aquela questão, pelo menos, estava resolvida". Lembro que achei graça em sua postura, como se a vida consistisse numa série de questões a serem resolvidas, uma lista na qual fôssemos ticando as colunas. Casamento: risca. Carreira: risca. Filhos: risca. Sapatos: risca.
Como o trabalho o levava todo ano à Franca, tio Estevão comprava um par a cada viagem e assim viveu tranquilo -pelo menos, no que se referia àquela "questão"- até 1990, quando o mercado abriu-se para o mundo e a fábrica, incapaz de competir com a concorrência chinesa, faliu. O dono, a essa altura já amigo do meu tio, telefonou-lhe para lamentar-se, para maldizer o governo, os chineses, a vida e avisar que os últimos pares do estoque eram seus. Vinte e dois pares, um presente por 38 anos de fidelidade.
Meu tio brincava, desde então, para desespero da tia Clara, que quando o último par se gastasse ele morreria. Segundo minha tia, na segunda-feira à noite ele sentou-se na cama, olhou os sapatos em petição de miséria e, calmo, como se viesse há muito se preparando para aquele momento, disse: "Já era". No dia seguinte, comentou, iria provar uns mocassins -mas não chegou a ver o dia seguinte.
Na manhã de sábado, revirei cada gaveta, cada armário, cada cômodo da casa. Tinha a esperança de que, em sua última noite, meu tio não tivesse jogado no lixo os sapatos que o acompanharam pela vida inteira, houvesse guardado ao menos um pé, como lembrança.
Por que eu queria tê-lo? Seria um símbolo da persistência? Da teimosia? Da busca pela imanência em meio à transitoriedade? Não sei. Não os encontrei. Claro. Era de se esperar que um homem pragmático a ponto de passar 60 anos com o mesmo sapato não fosse de guardar velharias como souvenirs. As questões, quando se resolvem, se resolvem. Morte: risca.
Folha_18.07