ENTRE O QUE CADA PESSOA é e a tal normalidade, há sempre alguma distância. Às vezes, um abismo. Esse introito é para dizer por que resolvi contar a história dos sete anões no Rio de Janeiro.
A história começa um pouco depois do meu nascimento. Nasci "normal" e, com nove meses, minha mãe descobriu que eu não crescia como devia. Com o passar do tempo, a distância entre a normalidade e o meu tamanho crescia alguns milímetros por mês na tabela do pediatra. Quando fiz dois anos, saí de vez do padrão e passei a ser considerada oficialmente diferente, ou, na linguagem médica, atingi o nível da patologia. Minha mãe procurou saber a causa e começamos um périplo por diferentes médicos.
Já começara a sentir os efeitos nefastos da diferença na pequena sociedade escolar quando descobrimos: eu tinha deficiência de hormônio de crescimento, doença conhecida como nanismo hipofisário.
Tornei-me cobaia do Hospital das Clínicas no desenvolvimento de um hormônio e, numa infância sadia -mas cercada de injeções, internações e exames de sangue-, batalhei cada centímetro rumo à tão propalada normalidade.
Aos 15 anos, consegui passar da marca de 1,40 m e me senti satisfeita por conquistar a almejada categoria de "baixinha". Dei por finda a batalha e entrei para um grupo de teatro.
Vinte anos depois, fui para o Rio dirigir "Woyzeck", a chamado do meu amigo Matheus Nachtergaele. A peça, de Georg Büchner, propõe uma estranha encruzilhada entre o realismo social e o grotesco. Nunca foi montada no século 19, mas influenciou decisivamente as vanguardas do século 20, mais especificamente autores como Wedekind e o jovem Brecht. Voltando à história, não sei bem por que, encasquetei que no elenco deveria ter um ator que fosse anão. Acho que eu queria chafurdar na lama da realidade, que é quase sempre extraordinária.
Como não conhecíamos nenhum, resolvemos fazer um teste. Num apartamento no Jardim Botânico, num dia nublado de verão, recebemos a visita de sete anões.
Cada ator deveria mostrar uma cena ou poema de seu conhecimento; depois, contaríamos uma cena da peça para um improviso e, por fim, faríamos uma entrevista, que, quase sempre, tornou-se uma conversa.
O primeiro, dono de bar, contou que fazia o papel de anão numa comédia picante e demonstrou a sua arte de ator virtuose ao representar todas as personagens de um triângulo amoroso. Não quis ser ator em tempo integral, porque "o salário não compensa as horas trabalhadas".
O segundo ganhava a vida como palhaço de loja e não gostava de "decorar texto".
O terceiro era um rapaz bonito que trabalhava como malabarista de circo.
O quarto contou a dificuldade de ser casado com uma mulher "normal" e pediu conselhos amorosos.
O quinto era conhecido no glorioso Retiro dos Artistas do Rio de Janeiro como "o mais antigo anão do Brasil".
O sexto revelou-me que 1,35 m era a altura máxima para ser reconhecido como anão e talvez ele fosse um pouco alto para o papel.
O sétimo vendia doces na esquina da av. Nossa Senhora de Copacabana. Tocou nossos corações ao recitar Casimiro de Abreu e revelar seu desejo de ser um ator "de verdade".
Fabiano Costa, o último candidato, foi nosso companheiro de trabalho por dois anos, tornou-se um ótimo ator e hoje trabalha na renomada Cia. de Mistérios e Variedades.
Foram tantas emoções nesse longo dia de verão carioca que, quando acabou o teste e a noite ficou vazia, tive a certeza de que, embora razoavelmente adaptada ao mundo da "gente grande", eu seria para sempre, ao menos no meu coração, uma criança anã. Talvez esse seja o meu secreto tesouro.
Como proclama Woyzeck com a lucidez da loucura: "Todo homem é um abismo, a gente fica tonto de olhar pra dentro dele".
Folha, 30.01
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